segunda-feira, agosto 28, 2006

Democracia etílica


Acabei de lembrar a história de um escritor louco judeu. Ele percorria as ruas da cidade com uma gaiola na mão. Dizia que ia caçar ratos judeus. Era como se eu andasse por ai com uma gaiola imaginária nas mãos. Só que eu não sabia exatamente o que caçar.
Cheguei do trabalho e dei uma rápida passada em casa. Ainda no caminho, estranhei uma mendiga que andava na rua importunando todo mundo. Era uma negra com uns trapos imundos. Vestia shorts curtos e tinha belas coxas. Diminui o passo para não passar pelo seu lado. Ela acabou atravessando a rua.
Deixei uns papeis em casa e desci até o bar. No caminho, encontro novamente a mendiga louca. Desta vez ela estava revirando uma lata de lixo, caçando seu jantar. De vez em quando ela parava de mexer no lixo e começava a discutir com a lixeira. Deixei para lá e segui meu rumo.
Gosto do boteco, pessoas de todos os tipos. Velhos que bebem para esquecer ou relembrar, comemorar ou lamentar. O porteiro de um prédio acabou de entrar. Estava vestindo o uniforme de trabalho e um pouco bêbado também. Timidamente ele tirou um vale transporte do bolso, chamou o cara do balcão, lhe mostrou o vale e suplicou por uma dose de pinga. O rapaz deve ter ficado com pena e serviu uma dose. O porteiro bebeu e foi embora.
Um cara da mesa ao lado começou a rir da cena. Ele também estava bêbado. Também havia sido porteiro. Foi demitido por trabalhar bêbado. Hoje ele continua tomando as dele.
A mendiga louca também apareceu por lá. Seu fedor paralisou o boteco. As conversas cessaram e todos ouviram ela pedir uma dose de pinga em um copo descartável. Pagou com algumas moedas e foi embora. As conversas se restabeleceram.
Enquanto o porteiro bebe para afastar o tédio de várias horas sentado em uma cadeira, o escritor bebe para as palavras fluírem mais facilmente. A mendiga louca toma umas de vez em quando só para diminuir a fome. Cada um com sua desculpa. Viva a democracia etílica.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Sarah e Campeón


Sarah era uma aplicada aluna de equitação. Após as aulas, sempre ia com o professor até o estábulo para guardar o cavalo. Ela gostava de cuidar pessoalmente do andaluz - presente de seu pai, que batizou o animal de Campeón.
Após as aulas, Campeón sempre era lavado e escovado por Sarah. Com os seres humanos, a menina não costumava ter tanta afinidade. Ela era um pouco calada, falava apenas o essencial. O irmão, único companheiro de brincadeiras, há alguns anos não fazia mais parte de seu dia a dia. Sarah estava com 17 e ele com 14, idade em que geralmente os meninos deixam de brincar com as irmãs para jogar futebol ou para acompanhar seus pais em caçadas pelo mato. Inicialmente ela sentiu a ausência do irmão. Mas logo ele foi substituído por Campeón e as aulas de equitação.
Ela cursava o último ano do segundo grau. Às vezes, deixava de ir ao colégio para passar algumas horas com o cavalo. Em uma sexta-feira chuvosa, ao entrar no estábulo para pegar ração, o caseiro Emanuel conta que viu uma cena estranha.

- Eles estavam fazendo relação.
- Como? – perguntei.
- Ah, muito estranho. Enquanto ela segurava o troço do cavalo, metia a mão entre as pernas.

Preferi não ouvir mais detalhes. O caseiro diz ter ficado com a cena na cabeça durante um bom tempo. Acabou que decidiu contar ao patrão. “E como eu ia falar pra ele uma coisa dessas? Rapaz, pensei muito. No fim eu disse que ela estava mimando demais o cavalo e perdendo aula no colégio por conta disso”.
Os pais de Sarah decidiram vender Campeón o mais rápido possível. Não queriam que a filha se prejudicasse nos estudos. No dia em que soube da notícia, Sarah entrou em desespero. Mas ela não fez muita questão de demonstrar isso. Apenas se trancou no quatro. De madrugada, a menina matou os pais com tiros de espingarda. Assustado, o irmão de Sarah correu até o local. Levou um tiro no peito e acabou como os pais.
Emanuel encontrou Sarah pela manhã. Ela estava sentada em uma poltrona na sala, com a espingarda ainda na mão. Ele subiu as escadas e encontrou o corpo do menino estirado no corredor. “Meu pais também, no quarto”, disse Sarah, lá de baixo. O caseiro saiu correndo até a cidade, em busca de ajuda. Voltou duas horas depois, com os policiais. Sarah ainda estava imóvel, na poltrona da sala.
Ela foi internada em uma casa de recuperação psicológica para jovens. Emanuel deixou o povoado para ser porteiro em meu prédio. Antes de subir para o apartamento, decidi fumar um cigarro e acabei puxando conversa com ele. O papo chegou nesta história. Sarah completa 21 anos amanhã e estará em liberdade.

- E agora, será que ela irá procurar por Campeón? – perguntei, meio que em tom de brincadeira.
- Se for, irá perder tempo. Eu o matei antes de vir para cá.