segunda-feira, outubro 02, 2006

Tudo que você queria saber...


...mas nunca perguntou para:

O vira-lata de rodoviária
Nome: Não identificado
Idade: Aproximadamente sete anos
Ocupação: Desempregado, autônomo, caçador...
Aonde encontrar: Rodoviárias

Fácil de encontrar nas rodoviárias*** do interior e das grandes cidades. Está sempre à espera de alguma guloseima. Costuma andar sozinho ou acompanhado de outros da mesma espécie. Ele é o cão vira-lata de rodoviária. Seu dia-a-dia é tranquilo, porém nunca foi o dos melhores. Fome, pulgas e fumaça dos ônibus são algumas das adversidades.  Em todas as rodoviárias pelas quais passei, sempre encontrei ao menos um deles. O último resolveu me conceder essa entrevista:

Eu: Vamos lá. Como se chama?
Ele: Não sei. Cachorro?
Eu: Eu sei, digo... o seu nome.
Ele: Ah, essa história de nome é coisa de humanos idiotas. Nunca tive dono, nunca tive nome. Ou melhor, já tive o senhor Freitas... lá no sítio. Mas ele me chamava de cachorro, ou de vagabundo.
Eu: Ok, pelo jeito você já teve um lar. Mas desde quando você vive na rodoviária?
Ele: Não sei, há muito tempo. Mas não iria adiantar nada eu te responder. Não tenho a mesma noção de tempo que vocês humanos têm.
Eu: Como assim?
Ele: Sei lá, costumamos lembrar muito pouco do dia anterior. Vivemos menos que vocês, mas não temos essa coisa idiota que vocês chamam de horas.
Eu: Hum... ok. Mas, e ai? O que vocês fazem para passar o tempo?
Ele: Nada. Espero algum idiota jogar comida. Quando aparece alguma cadela eu dou uma lambidinha na boceta dela...cadela...boceta dela..rimou, sacou?
Eu: Cara, você não faz mais nada que fuja essa rotina?
Ele: E você acha que a vida de vocês humanos é muito divertida, né? Estudar, trabalhar, comprar um carro, uma casa e ter filhos. Isso que é uma chatice, cara.
Eu: Humm... Ok. Mas, você tem medo de alguma coisa?
Ele: Ah, acho que só do canil mesmo. Dizem que lá é foda, que todos de lá não possuem mais esperança. Nunca serão adotados por algum humano.
Eu: Mas, é bom ser adotado por um humano?
Ele: Ah cara, é igual aquele negócio que vocês chamam de paraíso. Ninguém sabe se realmente vai ser bom, mas todo mundo quer ir pra lá. Eu não acredito mais nessa merda. Prefiro ficar aqui na rodoviária. Você, por exemplo, me adotaria? Somos pulguentos, temos doenças, somos feios, vira-latas e não fazemos nada.

Alguns segundos em silêncio.

Ele: Me desculpa cara, mas agora vou dar uma cagadinha e procurar minha janta. Você deve ser um daqueles repórteres honestos que não compram suas fontes com comida, certo? Estou indo, até mais.
Eu: Bem, eu não tenho dinheiro... Até mais.


Voltei para o ônibus morrendo de sono, se é que eu me levantei da poltrona número 23. Pareceu um sonho.
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*** Qualquer categoria de rodoviária, às cinco horas da manhã, além das assombrações, é sempre lúgrebre e melancólica. As misérias do mundo e do dia-a-dia predominam nos diálogos e principalmente nos monólogos que são sussurados por ali. Há sempre nelas um taxista sonâmbulo, um policial disfarçado, um sanitário com aquele cheiro adocicados de bagos de jaca, algumas prostitutas decadentes que não conseguem mais clientes [...] dois ou três andarilhos ou mendigos mijados, cheios de piolhos enrolados em cobertores e estirados nos bancos. Quem viaja sabe que uma rodoviária, além de servir de dormitório, também é um lugar quase sagrado para os miseráveis e outros sub-produtos do capitalismo cristão. [...] Um vigia noturno aqui, um bêbado acolá, o motor de um caminhão sendo esquentado, alguns cães focinhando as lixeiras e um homem insone debruçado no vão de uma janela de ferro que tenta adivinhar minha procedência e meu destino. (EZIO FLAVIO BAZZO, em Entre os gritos do carcará e a desfaçatez da raça humana, págs.: 31 e 32.)