Marco trabalhava nas ruas de Santo André. Era
artista de circo, fazia acrobacias com uma bola de cristal, ou era de vidro,
sei lá. Ele tinha me falado o nome dessas pessoas que praticam manobras com
essa bola de vidro, mas eu não lembro.
Sempre estava em meu caminho, quando eu ia para o
trabalho. Evitava olhar com medo de acabar atrapalhando. Eu tinha essa loucura:
sempre achava que se eu ficasse olhando muito tempo para sua exibição, faria
com que ele derrubasse a bola de cristal. Desde criança tenho isso, por isso
nunca gostei muito de malabaristas ou de ver pessoas penduradas em uma escada
trocando lâmpada. Eu acho que posso derrubá-las se ficar olhando muito.
Acho que era mesmo de cristal a bola. Até porque
quando Marco estava borracho, sempre falava sobre o futuro. Quando não estava,
falava sobre o presente e seu passado recente na Argentina. Ele era portenho,
torcia pelo Argentinos Juniors e vivia com o pai na periferia de Buenos Aires.
Encheu o saco de casa e decidiu viajar o mundo.
Falava que esse era seu futuro, viajar. A única coisa que lamentava ter deixado
para trás era Perrito. O vira-lata apareceu em sua vida em um amistoso do
Argentinos contra o Talleres, de Córdoba. Surgiu do nada, no gramado, no lado
de ataque do Talleres. Inicialmente os jogadores não o viram, com exceção do
goleiro do Argentinos, que tentou correr atrás do cachorro.
De repente, um jogador do Talleres chutou de longe.
A bola estava indo em direção ao gol vazio. Perrito correu em direção à bola e,
como um beque central, afastou o perigo. Em seguida, ele correu para fora das
quatro linhas. Os policiais tentavam alcançá-lo, sem sucesso, para delírio da
torcida. O jogo recomeçou enquanto Perrito ainda dava um show nos policiais. Um
deles, revoltado, o acertou com um chute covarde.
Ainda mais revoltado, com a cena, Marco pulou o
alambrado e invadiu o gramado. Foi rápido o suficiente para alcançar Perrito,
pegá-lo no colo, e sair direto para o banco de reservas do Argentinos. Lá, os
jogadores impediram que os policiais o pegasse. Viram a covardia dos fardados e
a coragem de Marco. Decidiram proteger a dupla, que desde então não se separou
mais.
Marco cuidou e adotou Perrito, que virou o mascote
da barra de seu bairro. A separação aconteceu quando Marco decidiu vir para o Brasil.
O que mais partiu o coração de Marco foi ver Perrito o seguir até o ponto de
ônibus, onde passava uma condução para a rodoviária.
Em Santo André, estava sem ninguém para conversar
quando puxei assunto com ele pela primeira vez. Ele conversava com muita gente,
mas não lhe falavam nada no fim. Falei para ele não vacilar nas ruas, que eram
perigosas para qualquer um – quem dirá para um argentino. Ele me falou que
gostava de viver em meio aquele caos das calles, mas que sabia do perigo e, às
vezes, cansava. Recebia um dinheiro do pai e me convidou para dividir um apê.
Acabei não levando a ideia muito a sério. Só nos
encontrávamos na mesa do bar. Acho que ele não me levava muito a sério também.
O tempo passou, eu me mudei novamente. Hoje, passado mais de um ano de nossa
última conversa, me lembrei de Marco, quando um vira-lata me tirou a atenção.
Senti algo que Marco sentiu, quando vi o cachorro apanhar de dois idiotas
bêbados. Joguei pedra neles e foram embora correndo. Covardes.
Eu dei comida ao meu Perrito, um cachorro-quente.
Acho que Marco cuidaria bem dele também. Sei que lembrei do malabarista louco,
de suas verdades e/ou mentiras. Espero que ele esteja vivo.