quarta-feira, agosto 29, 2007

O engraxate

Ele era um homem de negócios. Bem, um homem de negócios não. Ele apenas trabalhava com o pai em uma loja de produtos de informática; o pai era o dono. Mas para mim ele era um homem de negócios e eu sou apenas um engraxate. Doze anos engraxando sapatos. Taxistas, velhos, executivos que prometiam algum emprego, executivos que queriam uma chupada em troca de um emprego.
Ainda era início da noite. Peguei uma condução até o distrito comercial na expectativa de ganhar alguns trocados. Geralmente não ganho nada. Andava muito, apenas. Naquela noite resolvi tomar uma rota diferente. Decidi começar em um boteco, não em um bar ou restaurante. É mais fácil encontrar clientes em botecos; geralmente eles estão bêbados o suficiente para serem generosos. Entrei no “Distro” e comecei com a abordagem de sempre.
Ele:
- Você passa só uma escova por 50 cents?

Que tipo de idiota fala cents ao invés de centavos? Quando ia responder que sim, uma mulher que estava na mesa interviu:

- O que é isso? Fazer ele se abaixar para escovar suas botas por 50 centavos? Se você não tem o dinheiro eu pago.

Realmente ele falou que não tinha dinheiro, acho que para se desculpar da situação embaraçosa (se bem que havia ficado mais embaraçosa ainda). Se não tinha dinheiro, por quê estava lá tomando cerveja? Comecei a engraxar. Para ele era uma sensação de poder, ter alguém inferior ajoelhado lustrando suas botas. A moça começou a falar alguma coisa sobre uma mulher que vendia água mineral na feira e com isso havia conseguido comprar uma casa luxuosa.

- E você, o que conseguiu até agora engraxando sapatos? - ele perguntou.
- Ajudei minha mãe. ( Pensei um pouco e continuei) Se ficasse com o dinheiro só para mim, poderia ter comprado um carro e uma casa. Mas tive de ajudar minha mãe.
- Só você trabalha na sua família?
- Sim.
- Você estuda?
- Voltei a estudar agora. Quando eu terminar vou fazer um curso para vigilante. Já são doze anos engraxando. Quero mudar de vida.

Havia terminado de passar graxa no pé direito quando ele se virou novamente para a mesa. Dizia para a moça que seu pai havia começado a trabalhar como engraxate aos nove anos, também para ajudar a mãe. Não sei se havia falado aquilo apenas para comover a garota.

- Você deve conhecer ele. Sempre vem aqui tomar uma cerveja. Toda vez que aparece algum engraxate ele pede que engraxem seus sapatos e começa a falar sobre o tempo dele. Sempre dar umas gorjetas a mais. Teve uma vez que até conseguiu um emprego para um engraxate. Você conhece meu pai?

Seus olhos estavam marejados. Ele havia se emocionado com tudo aquilo? Talvez ele não fosse tão esnobe quanto demonstrara. Acho que era uma boa pessoa.

- Te fiz uma pergunta. Você conhece meu pai?
- Ah, não senhor. Não conheço.

Havia conhecido sim. Ele era um senhor legal. Uma vez, naquele mesmo bar, me disse que queria muito me ajudar, mas que naquele momento não era possível. Apenas pagou o equivalente a cinco engraxadas.

- Pois eu vou te ajudar

Não tenho certeza, mas no momento em que ele falou essa frase “Pois eu vou te ajudar”, uma lágrima caiu de seus olhos. Era comum encontrar alguém disposto a me ajudar. Eu comovia os outros. Mas na verdade todos eles não passavam de bêbados querendo se aparecer. Ele parecia diferente. Senti em seus olhos que ele realmente iria me ajudar. Me deu um cartão com o número do telefone de sua empresa.

- Qual o seu nome?
- Luis.
- Luis, me ligue amanhã. Te arrumarei alguma coisa.

No dia seguinte liguei, umas sete vezes. Em nenhuma delas consegui falar com ele. À noite decidi passar novamente no boteco. Lá estava ele, desta vez sozinho. O cumprimentei.

- Não, não quero engraxar.

Ele havia me enganado. Era apenas mais um daqueles bêbados.

segunda-feira, julho 02, 2007

Papo sério

Tudo começou quando eu tentei contar aquela velha piada do Cadastro Único (C.U.) em uma mesa de bar. O clima estava propício. Pouco assunto na mesa e uma rodada de piadas havia começado. As três primeiras foram ótimas. Então lembrei dessa do Cadastro Único. Ok, tudo bem. Nunca fui um bom contador de piadas, mas nunca imaginaria o rumo que aquela ingênua tentativa tomaria.
Sei que comecei a piada me segurando para não rir. Estava sério, um pouco tenso, confesso. Continuei bravamente. Disse que o governo estava com planos de criar o tal Cadastro Único ou (C.U.). Acho que é assim que a piada realmente começa. Expliquei que o documento traria todas as informações do indivíduo, como R.G., CPF, título de eleitor, carteira de reservista...
Antes mesmo de chegar no desenvolvimento da piada - a parte onde eu diria que o sujeito só precisaria mostrar o C.U. (leia-se cú) para abrir um crediário ou uma poupança - sou interrompido pelo Valtão, que já tava meio alto:

- A época da ditadura está voltando. Eles também tinham a idéia de colocar todas as informações do sujeito em apenas um documento. Ficaria mais fácil para eles manter o controle da sociedade.

Tudo bem, só um parêntese do nosso amigo Valtão, pensei. Agora poderei continuar minha piada e esperar as gargalhadas, pensei.

- Mas o futuro tenderá a isso. Todos os nossos documentos, até o nosso cartão de crédito, em um documento só – endossou o Professor, sentado a minha direita.

- Rapaz, vai ser isso mesmo. Terá até informação do nosso plano de saúde nesse documento. É chegar no hospital e pá-púm, tudo resolvido. Não vai ter mais essa papelada toda, esse monte de cartão que todo mundo carrega na carteira – empolgou Lázaro.

- Eu li em uma revista que todas essas informações ficarão armazenadas em um chip, dentro da nossa pele. Isso será em um futuro próximo – disse Valtão, abastecendo com cerveja os copos da mesa.

Minha piada já tinha ido pras cucúias há muito tempo. Ouvia toda aquela conversa calado, retraído. Só eles falavam.

***

Professor: No futuro? Rapaz, isso já está acontecendo lá no Japão. Já tem esse tal chip por lá.

Lázaro: É, estamos chegando ao fim dos tempos.

Professor: Só pra você ter uma idéia, daqui há um tempo será possível teletransportar matéria. Einstein provou isso no passado.
Puta merda, já era mesmo minha piada. Fudeu. Já estamos na física quântica.
Um cara que estava sentado no balcão ouve o comentário do professor e decide entrar na conversa.

O cara: Não, Einstein nunca provou isso. Ele falava de uns átomos lá, não tem nada a ver com viagem no tempo.

Professor: Então meu filho, átomo, matéria, matéria, átomo. Sacou?

Já havia ficado muito tempo calado. Decidi entrar em ação.

Eu: Pessoal, lembrei daquele desenho do pica-pau com aquele professor maluco que tinha aquela máquina do tempo.

Valtão: Ah, sim. O pica-pau viajava até a idade da pedra e voltava com um tiranossauro.

Eu: É, isso mesmo. O tiranossauro atrás do pica-pau querendo comer a cabeça dele.

O cara: Mas peraí, o tiranossauro é vegetariano.

Silêncio na mesa

Professor: Rapaz, lembrei agora da minha filha. Ela diz que virou vegetariana. Diz que não come nada vivo. Eu tento provar para ela que há vida nas plantas. Elas têm sentimento, sabia?

Eu: E o que sua filha vai comer? Como ela vai se alimentar?

Professor: Sei lá. De luz?

***

Acabaram os assuntos. Eu paguei minha conta e fui para casa lamentando, ainda lembrando a piada do C.U. Que povo mais sem graça. Não se pode nem contar uma piada.