...mas nunca perguntou para:
O vira-lata de
rodoviária
Nome: Não identificado
Idade: Aproximadamente sete anos
Ocupação: Desempregado, autônomo,
caçador...
Aonde encontrar: Rodoviárias
Fácil de encontrar
nas rodoviárias*** do interior e das grandes cidades. Está sempre à espera de
alguma guloseima. Costuma andar sozinho ou acompanhado de outros da mesma
espécie. Ele é o cão vira-lata de rodoviária. Seu dia-a-dia é tranquilo, porém nunca
foi o dos melhores. Fome, pulgas e fumaça dos ônibus são algumas das
adversidades. Em todas as rodoviárias
pelas quais passei, sempre encontrei ao menos um deles. O último resolveu me
conceder essa entrevista:
Eu: Vamos lá. Como se chama?
Ele: Não sei. Cachorro?
Eu: Eu sei, digo... o seu nome.
Ele: Ah, essa história de nome é coisa de humanos idiotas. Nunca tive dono,
nunca tive nome. Ou melhor, já tive o senhor Freitas... lá no sítio. Mas ele me
chamava de cachorro, ou de vagabundo.
Eu: Ok, pelo jeito você já teve um lar. Mas desde quando você vive na
rodoviária?
Ele: Não sei, há muito tempo. Mas não iria adiantar nada eu te responder.
Não tenho a mesma noção de tempo que vocês humanos têm.
Eu: Como assim?
Ele: Sei lá, costumamos lembrar muito pouco do dia anterior. Vivemos menos
que vocês, mas não temos essa coisa idiota que vocês chamam de horas.
Eu: Hum... ok. Mas, e ai? O que vocês fazem para passar o tempo?
Ele: Nada. Espero algum idiota jogar comida. Quando aparece alguma cadela eu
dou uma lambidinha na boceta dela...cadela...boceta dela..rimou, sacou?
Eu: Cara, você não faz mais nada que fuja essa rotina?
Ele: E você acha que a vida de vocês humanos é muito divertida, né? Estudar,
trabalhar, comprar um carro, uma casa e ter filhos. Isso que é uma chatice,
cara.
Eu: Humm... Ok. Mas, você tem medo de alguma coisa?
Ele: Ah, acho que só do canil mesmo. Dizem que lá é foda, que todos de lá
não possuem mais esperança. Nunca serão adotados por algum humano.
Eu: Mas, é bom ser adotado por um humano?
Ele: Ah cara, é igual aquele negócio que vocês chamam de paraíso. Ninguém
sabe se realmente vai ser bom, mas todo mundo quer ir pra lá. Eu não acredito
mais nessa merda. Prefiro ficar aqui na rodoviária. Você, por exemplo, me
adotaria? Somos pulguentos, temos doenças, somos feios, vira-latas e não
fazemos nada.
Alguns segundos em silêncio.
Ele: Me desculpa cara, mas agora vou dar uma cagadinha e procurar minha
janta. Você deve ser um daqueles repórteres honestos que não compram suas
fontes com comida, certo? Estou indo, até mais.
Eu: Bem, eu não tenho dinheiro... Até mais.
Voltei para o ônibus morrendo de sono,
se é que eu me levantei da poltrona número 23. Pareceu um sonho.
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*** Qualquer
categoria de rodoviária, às cinco horas da manhã, além das assombrações, é
sempre lúgrebre e melancólica. As misérias do mundo e do dia-a-dia predominam
nos diálogos e principalmente nos monólogos que são sussurados por ali. Há
sempre nelas um taxista sonâmbulo, um policial disfarçado, um sanitário com
aquele cheiro adocicados de bagos de jaca, algumas prostitutas decadentes que
não conseguem mais clientes [...] dois ou três andarilhos ou mendigos mijados,
cheios de piolhos enrolados em cobertores e estirados nos bancos. Quem viaja
sabe que uma rodoviária, além de servir de dormitório, também é um lugar quase
sagrado para os miseráveis e outros sub-produtos do capitalismo cristão. [...]
Um vigia noturno aqui, um bêbado acolá, o motor de um caminhão sendo esquentado,
alguns cães focinhando as lixeiras e um homem insone debruçado no vão de
uma janela de ferro que tenta adivinhar minha procedência e meu destino. (EZIO
FLAVIO BAZZO, em Entre os gritos do carcará e a desfaçatez da raça humana,
págs.: 31 e 32.)
Um comentário:
Gostei de seu texto. Também da citação do texto do Ezzio Bazzo. Soube que o livro dele Prostitutas, Bruxas, Donas de casa está sendo reeditado. Sabes alguma coisa a respeito?
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