quinta-feira, novembro 17, 2011

Marco y Perrito


Marco trabalhava nas ruas de Santo André. Era artista de circo, fazia acrobacias com uma bola de cristal, ou era de vidro, sei lá. Ele tinha me falado o nome dessas pessoas que praticam manobras com essa bola de vidro, mas eu não lembro.
Sempre estava em meu caminho, quando eu ia para o trabalho. Evitava olhar com medo de acabar atrapalhando. Eu tinha essa loucura: sempre achava que se eu ficasse olhando muito tempo para sua exibição, faria com que ele derrubasse a bola de cristal. Desde criança tenho isso, por isso nunca gostei muito de malabaristas ou de ver pessoas penduradas em uma escada trocando lâmpada. Eu acho que posso derrubá-las se ficar olhando muito.
Acho que era mesmo de cristal a bola. Até porque quando Marco estava borracho, sempre falava sobre o futuro. Quando não estava, falava sobre o presente e seu passado recente na Argentina. Ele era portenho, torcia pelo Argentinos Juniors e vivia com o pai na periferia de Buenos Aires.
Encheu o saco de casa e decidiu viajar o mundo. Falava que esse era seu futuro, viajar. A única coisa que lamentava ter deixado para trás era Perrito. O vira-lata apareceu em sua vida em um amistoso do Argentinos contra o Talleres, de Córdoba. Surgiu do nada, no gramado, no lado de ataque do Talleres. Inicialmente os jogadores não o viram, com exceção do goleiro do Argentinos, que tentou correr atrás do cachorro.
De repente, um jogador do Talleres chutou de longe. A bola estava indo em direção ao gol vazio. Perrito correu em direção à bola e, como um beque central, afastou o perigo. Em seguida, ele correu para fora das quatro linhas. Os policiais tentavam alcançá-lo, sem sucesso, para delírio da torcida. O jogo recomeçou enquanto Perrito ainda dava um show nos policiais. Um deles, revoltado, o acertou com um chute covarde.
Ainda mais revoltado, com a cena, Marco pulou o alambrado e invadiu o gramado. Foi rápido o suficiente para alcançar Perrito, pegá-lo no colo, e sair direto para o banco de reservas do Argentinos. Lá, os jogadores impediram que os policiais o pegasse. Viram a covardia dos fardados e a coragem de Marco. Decidiram proteger a dupla, que desde então não se separou mais.
Marco cuidou e adotou Perrito, que virou o mascote da barra de seu bairro. A separação aconteceu quando Marco decidiu vir para o Brasil. O que mais partiu o coração de Marco foi ver Perrito o seguir até o ponto de ônibus, onde passava uma condução para a rodoviária.
Em Santo André, estava sem ninguém para conversar quando puxei assunto com ele pela primeira vez. Ele conversava com muita gente, mas não lhe falavam nada no fim. Falei para ele não vacilar nas ruas, que eram perigosas para qualquer um – quem dirá para um argentino. Ele me falou que gostava de viver em meio aquele caos das calles, mas que sabia do perigo e, às vezes, cansava. Recebia um dinheiro do pai e me convidou para dividir um apê.
Acabei não levando a ideia muito a sério. Só nos encontrávamos na mesa do bar. Acho que ele não me levava muito a sério também. O tempo passou, eu me mudei novamente. Hoje, passado mais de um ano de nossa última conversa, me lembrei de Marco, quando um vira-lata me tirou a atenção. Senti algo que Marco sentiu, quando vi o cachorro apanhar de dois idiotas bêbados. Joguei pedra neles e foram embora correndo. Covardes.
Eu dei comida ao meu Perrito, um cachorro-quente. Acho que Marco cuidaria bem dele também. Sei que lembrei do malabarista louco, de suas verdades e/ou mentiras. Espero que ele esteja vivo.

quarta-feira, setembro 07, 2011

Sasá

Samanta só queria fumar um. Havia terminado o namoro de dois anos e alguns meses e resolveu se dedicar mais ao trabalho e à vida pessoal. O pouco tempo que lhe restava era destinado ao projeto de mestrado.
Estava carente, sem sexo desde o término do namoro, há uns oito meses. Estava estressada. Planejar o futuro a deixava louca. Não conseguia dormir direito, exceto quando encontrava as amigas. Uma delas, meio hippie, sempre tinha um baseado. Samanta dava três bolas e ficava legal, conseguia então uma boa noite de sono.
Naquela sexta-feira, a amiga hippie não estava presente. Ela tinha ido acampar em uma dessas cidadezinhas qualquer de hippie. Foi curtir uma vibe.
O grupo de amigas estava em um showzinho de rock, a banda do irmão da colega hippie. Lá pela quarta música, Salsicha (era mesmo em homenagem ao personagem do desenho Scooby Doo) chegou na mesa das meninas. Ele era amigo da hippie e de seu irmão músico. Conversou um pouquinho com elas e logo saiu. Samanta não conseguiu ouvir muito bem o que ele havia conversado.
Uma delas disse que Salsicha estava convidando para fumar um, fora do bar. Elas recusaram, mas Samanta pensou que não seria uma má ideia. Pensou mais uma vez e resolveu procurar Salsicha no bar. Logo se encontraram e foram acender o baseado.
Salsicha achou melhor fumar em seu carro, para não “esparrar”. Samanta sentiu um frio na barriga e pensou: ‘No carro dele? Será que ele dará em cima de mim? O baseado é dele, se eu desse seria até uma forma de agradecimento. Ele é até bonitinho. Fumo, dou, fumo, fico legal e vou para casa dormir bem. Melhor dá no carro logo. Vai que ele decide ir a um motel’.
Samanta odiava motéis. Era muito impessoal, ficava difícil entrar no clima. Quantas pessoas haviam gozado no chão do quarto, na cama, no box do banheiro, no copo do frigobar... MEU DEUS!
Acendem o baseado e começam a fumar. Ele parece viajar muito, parece não estar interessado em sexo, ou pior, nela. Às vezes, ele fala mais próximo do rosto de Samanta. Na quarta vez que isso acontece, ela decide beijá-lo. Os dois transaram em seguida.
Para Samanta, foi “legal” e um alívio, pois não havia demorado muito e ela podia ir para casa agora. Dormiu como um anjo. Nem se preocupou muito com a camisinha, ou com a falta dela. Ninguém tinha o preservativo lá na hora e ela não quis interromper o lance. No dia seguinte, passaria em uma farmácia e pediria uma pílula do dia seguinte.
Quase um mês depois... Isso mesmo. Samanta descobriu que estava grávida. Conversou primeiramente com as amigas, depois com seus pais. Salsicha, coitado, seguia com seus baseados. Samanta nem pensou em contar para ele ou com sua ajuda. Em um primeiro momento, ela pensou em abortar. Seu emprego, o mestrado na Sorbonne.
Um colega da amiga hippie conhecia um pouco o submundo e poderia conseguir, sem problemas, algum comprimido abortivo. Porém, uma semana após descobrir a gravidez, ela decidiu ter o Salsichinha.
Salsichinha veio ao mundo cercado do amor das amigas de Samanta e de seus pais. Ao contrário de Salsicha, que havia dado uma boa noite de sono para Samanta, Salsichinha não a deixava dormir. Chorava a noite inteira.
A bolsa na Sorbonne saiu. Samanta decidiu fazer o mestrado por insistência de seus pais, que cuidariam de Salsichinha. Ela era filha única e seu filho era mais que o neto para os avós.
Ela se formou, voltou e conseguiu um ótimo emprego. Salsichinha cresceu, hoje tem 11 anos, anda de skate e ouve rock. Daqui a alguns anos ele estará fumando um baseado com sua mãe, que depois de umas três bolas irá dormir pesado. Afinal, filho de Salsicha, Salsichinha é. Não vai negar o gene.
Quando está todo mundo reunido, Salsichinha, Samanta e as amigas, todos cantam, em ritmo de Carnaval: SasáSasá Sasáh Sasáááhhh, SasáSasá Sasáh Sasááh!