quinta-feira, dezembro 31, 2020

Véspera de réveillon

É só mais um dia,

Que se arrasta para terminar.

Pedro, o problemático morador de rua, continua a praguejar com todos e a abrir e fechar, com muito barulho, contêineres de lixo.

O velho doido e religioso e do prédio vai à rua com um megafone, cantar umas músicas sobre Deus que eu nao consigo entender.

Os motoristas insistem em fazer uma via de mão dupla na estreita rua, que congestiona e vira uma sinfonia de buzina. 

Senhoras entram e saem da mercearia, carregando sacolas de compras.

Eu vejo tudo aqui de cima.

É só mais um dia,

Que, para não ficar sem graça, eles chamam de véspera de réveillon.

Parece que teremos chuva.

terça-feira, dezembro 29, 2020

Salvador, Sarajevo

Duas cidades com a letra S, e oito caracteres. Uma foi onde eu nasci. Outra é onde minha alma está presa. Meus sonhos (aqueles que temos enquanto dormimos, os únicos possíveis, atualmente) misturam-se com os da infância. 

O primeiro é sobre um mundo distópico, na Bósnia. Uma mistura do cerco dos anos 1990, com um 2000 e alguma coisa. Eu preso num passado que nunca vivi, com um presente que não acredito, e um futuro que eu já vi em algum filme de ficção. 

Mas é sempre a mesma cena, no bairro de Grbavica. Perto de um rio, ou um canal, que está ao lado direito. Rua arborizada, com umas carcaças de carros, que servem como escudo contra os snipers. Uma casa sem telhado, que foi incendiada, à esquerda. À frente, um prédio cinza cravado de bala. Cinza também é o dia, frio.

Outro sonho, emendado com o anterior, sou eu no Mercado Modelo. Antes, estou na parte alta da cidade. Corro atrás dos pombos e faço todos eles voarem. Desço o elevador e vou ao mercado. Muito barulho e confusão. Cheiro de peixe e de mijo. 

O calor e algo que comi, que não lembro, me dão uma caganeira. Meu pai me leva ao banheiro. O cheiro é horrível. Não tem papel. Me limpo com minha cueca. Era o mesmo ano do cerco a Sarajevo, salve a memória. Sei que me caguei todo. 

Queria duas cidades em uma: Salvador e Sarajevo. Quando eu morrer, joguem minhas cinzas da Ponte Latina, onde Gavrilo matou Ferdinand, sobre o rio Miljacka. Numa segunda-feira, dia de Omolu. E comam acarajé, no Mercado Modelo. Espero que nao tenham caganeira.

quarta-feira, dezembro 16, 2020

Chuva míope

Uma gota de água pingou em meu rosto, perto da boca. Achei que era chuva, mas percebi que ela havia caído dos meus óculos. Lembrei que antes eu estava chorando por algum motivo, que esqueci. Na próxima tempestade, eu lembro.