Ao
contrário do transporte público, a faixa de pedestre funciona em Brasília.
Certo alento para uma cidade que parece ter mais carro que habitante. Algo indiferente
para um senhor, parado perto da faixa, esperando o trânsito parar.
Segunda-feira,
solzão de meio-dia. Pais pegando os filhos na escola em carros com
ar-condicionado, e a certeza que a única coisa que poderia atrapalhar o almoço
era o congestionamento. O senhorzinho parecia se desmanchar
debaixo do sol, não tinha certeza se iria almoçar ou jantar. Nem tinha
certeza se conseguiria atravessar a rua.
Seus
trapos de mendigo, os pés descalços, a fisionomia franzina eram invisíveis aos
motoristas. Ninguém parou para o velho passar, a faixa não funcionou, a imagem
não sensibilizou. Um autêntico ser invisível.
Poderia
falar sobre sua história de vida sofrida. Pobreza, abandono familiar. Poderia falar que uma garotinha, muito
sensibilizada, largou a mão da mãe e correu em direção ao homem para ajudá-lo
a atravessar a rua. Ou que um cachorro ou uma família de patos cruzou a pista
utilizando a faixa, arrancando gargalhadas e afeto dos motoristas – tipo
aquelas notícias de internet. Então o senhorzinho mendigo pôde atravessar junto
com os bichinhos; e ainda levou uma buzinada por demorar mais que o cachorro.
Mas
não precisei inventar nada mais comovente. A cena do mendigo invisível já dizia
tudo para mim. Estava no sentido oposto, parado no congestionamento, observando
o trânsito do outro lado fluir e senhor lá parado, tentando atravessar a rua.
Depois
de divagar com aquela cena, no calor de meio-dia, não me contive. Puxei o freio
de mão, desci do meu carro sem ar-condicionado e fui até o outro lado da pista
parar o trânsito. O senhorzinho finalmente conseguiu atravessar. Veio ao meu
encontro e agradeceu (poderia falar que ele estava com os olhos marejados).
Por
um instante pensei que os carros não haviam parado antes apenas por uma questão
de sinalização. Eu estendi o braço e os motoristas pararam na mesma hora. O
mendigo não deu a mão. Será que realmente ele queria atravessar a rua?
Mas e o cão e a família de patos dariam a
porra da pata ou da asa para atravessar? Eles realmente queriam cruzar a via?
Não me venha com insensibilidade, cérebro. Não vamos estragar a cena do mendigo
invisível aos motoristas.
Meu
devaneio foi interrompido pelo buzinaço. Meu carro estava lá parado, de porta
aberta, atrapalhando o trânsito.